PAIXÃO SOBRE RODAS
Seja pela vibração do motor, pelo design, ou pelo restauro, a paixão pelos carros antigos e partilhada por muitos. E na Madeira o parque automóvel tem sobretudo carros populares com elevado nível de restauro.
Se tiver de escolher um carro de sonho, o escultor Ricardo Veloza não hesita: Um Bugatti Type 35, a máquina de corridas introduzida em 1924 e que ainda hoje é um dos carros antigos mais apreciados do Mundo.
Outro modelo que este artista, nascido na Madeira, destaca, é paradoxalmente diferente: Um Land Rover, “um exemplo máximo do design aplicado a uma máquina. Um carro feito para trabalhar” e que apesar do passar dos anos “ainda trabalha”.
Ricardo Veloza não sabe quando começou a paixão por carros antigos. Mas desde que se lembra “os carros fora de época me diziam muito”. O interesse aumentou com o tempo e tornou-se “de certa maneira, um pouco da minha vida”.
A veia artística cedo se manifestou e foi desenhando modelos de carros. “Sempre foi uma área a que me dediquei”, explica já que fruto do trabalho como escultor e designer, passou “uma vida a desenhar cartazes e logótipos e pinturas de carros” sobretudo de rali.
Os desenhos estão reunidos no livro “A arte automóvel de Ricardo Veloza”, uma complicação feita por Eduardo Jesus, atual secretário regional do Turismo e Cultura da Madeira e também um apaixonado por carros clássicos e antigos.
Foi também Eduardo Jesus quem lançou mãos ao desafio de investigar a história do primeiro automóvel a circular na Madeira, um 10 h.p. Worlseley, trazido a 21 de janeiro de 1904, pelo empresário britânico Harvey Foster que, vindo passar o Inverno à ilha, não quis ficar afastado do prazer de conduzir.
O “invasor de 10 cavalos”, como a máquina ficou conhecida, viveu uma série de peripécias na Madeira, mas marcou o começo da história do automóvel nesta ilha, onde ao longo das décadas seguintes chegariam milhares e milhares de automóveis. Muitos deles acabariam por sobreviver até aos dias de hoje.
Não há certezas sobre o número de automóveis clássicos e antigos existentes na Madeira. Entre mais recentes e antigos, o número pode muito bem chegar a quatro mil, como avançam alguns, ou 1.500 a dois mil como sustenta António Martins, presidente do Clube de Automóveis Clássicos da Madeira. Tudo depende do critério usado e do estado de conservação dos veículos, que para serem considerados, têm de ter um certificado de interesse histórico, que classifica o carro como estando original e a idade deve ser pelo menos 30 anos.
O número é significativo. Mas a importância deste parque automóvel vem sobretudo do bom estado de conservação e restauro. Eduardo Jesus nota que isso impressiona quem visita a Madeira: “Há uma grande surpresa em descobrir que a Madeira tem um património tão vasto quanto este”. Os visitantes ficam “muito admirados como é que numa ilha tão pequena, perdida no Atlântico, existem tantos carros antigos e em tão bom estado de conservação.”
A qualidade do restauro feito na Madeira parece ser consensual. Eduardo Jesus destaca que “a grande maioria dos carros são restaurados de A a Z aqui na Madeira”. Isto significa ter “mecânicos à altura, bate-chapas, pintores, eletricistas, estofadores”, pessoas que “têm esta habilidade de trabalhar com os carros mais antigos”.
Ricardo Veloza é um dos apaixonados que lança mãos ao trabalho. “Eu ajudo a restaurar, mas tenho pessoas que conheço e que fazem um trabalho muito bem feito”. O escultor tem pena que o potencial dos artesãos que se dedicam ao restauro não seja mais explorado.
Para o restauro bem-sucedido são necessárias peças. A facilidade de as encontrar varia com a marca e o modelo. Eduardo Jesus assinala que já se chegaram a fabricar localmente as peças necessárias.
O universo de carros antigos e clássicos da Madeira tem várias origens, refere Eduardo Jesus. “Houve, numa determinada altura, nos anos 80, a tendência de as pessoas adquirirem carros fora e houve a importação de muitos carros bons, nessa altura, para a Madeira. Mas a verdade é que a grande quantidade de carros clássicos que temos é daqui mesmo. Foram carros que circularam na Madeira, ligados a várias famílias, que por haver um valor sentimental, por ser do pai, da mãe, ou do avô ou do tio, os atuais proprietários restauram, acarinham, preservam. E a verdade é que são na sua maioria carros mais populares do que propriamente raros.”
A expressão “carros populares” é também usada por António Martins, presidente do Clube de Automóveis Clássicos da Madeira, para descrever o parque de viaturas antigas da Madeira. “Não temos os supercarros nem os grandes modelos, mas temos os carros populares com um restauro de excelência.”
Ricardo Veloza destaca que embora o parque automóvel não contenha “marcas como se vê lá fora”, contém alguns carros de destaque. Alguns Rolls Royce, Bentley, alguns Jaguares, Porsche ou Mercedes especiais. Mas há sobretudo carros mais comuns, como Volkswagon, BMW, Austin, Morris, Fiat, ou Volvo, entre outros.
Ricardo Veloza salienta que “às vezes há carros populares em que os proprietários entram num nível de restauro superior”, o que contribui muito para a singularidade do parque automóvel madeirense.
Este facto é notado por Eduardo Jesus, ou seja, a vontade dos proprietários em querer manter os carros em boas condições, sempre encerados e aprimorados, o que também contribui para a imagem da Madeira.
As condições excelentes do restauro fazem com que o parque automóvel da Madeira se torne num “mercado apetecível”, em que alguns automóveis “saíram das exposições que nós realizamos para diversas partes do Mundo”, adquiridos por colecionadores, refere António Martins. Na Austrália, Estados Unidos, Japão, Emiratos Árabes Unidos, e em vários países da Europa e até em países africanos circulam carros antigos e clássicos que já pertenceram ao parque automóvel da Madeira.
Os eventos, como exposições e concentrações são uma forma de dar a conhecer este património. Anualmente o Madeira Classic Car Revival, por altura da Festa da Flor, é um exemplo de um acontecimento que reúne cerca de 500 veículos antigos. Mas existem provas desportivas e outros motivos para os carros saírem das garagens. Isto porque também existem diversos clubes de automóveis clássicos, alguns deles dedicados a uma marca ou modelo específicos, como Clube Carocha da Madeira, dedicado ao icónico modelo da Volkswagon.
“Algumas iniciativas que se fazem aqui na Madeira reúnem todos os clubes e todas as associações existentes”, refere Eduardo Jesus, o que é importante porque permite que a Madeira possa “fazer coisas de dimensão diferente”, que atraia a atenção exterior.
Mas a paixão é o que move os donos destes carros. Não se trata apenas de manutenção e conservação. É também o prazer de conduzir. “Um carro dos anos 40 ou 50 nada tem a ver com os carros atuais”, refere Ricardo Veloza. “E isso é uma das coisas que me encanta, a evolução do automóvel ao longo dos anos”.
Eduardo Jesus partilha que conduzir estes carros “é uma sensação única porque é uma viagem no tempo”. Exige mais habilidade e mais destreza física, visto não existirem os automatismos associados aos carros atuais. “Gosto muito, acima de tudo, de guiar carros diferentes, porque cada um deles tem uma lógica na direção, ou na caixa de velocidades”, ou descobrir “os segredos de um determinado motor”. Este apaixonado pelos clássicos refere a sensação de vibração do carro e não duvida que os motores antigos “têm outra liberdade, que não os motores atuais.”
“Esta ligação entre o homem e a máquina é mais fascinante nessa experiência e torna-se mais rica consoante a oportunidade de ir guiando carros diferentes”, refere.
A forma como Ricardo Veloza se relaciona com os carros também mudou com o tempo: “houve uma altura em que o sonho era pegar num carro velho e estragado e recuperá-lo até ficar imaculado. E hoje em dia com o passar dos anos e com a experiência que tenho, o meu sonho é ter um carro original, que não tenha sido mexido”. Um sonho em parte alcançado, porque dos carros que possui, um Rolls Royce, “está original”. Completa 100 anos em 2028. “Quando ando no carro tento imaginar as histórias que aquele carro terá passado”.
Não há grandes colecionadores de carros clássicos e antigos na Madeira. Mas há muitas pessoas que têm um ou dois destes automóveis. Os proprietários com mais exemplares têm cerca de 30. Alguns têm entre 10 e 20.
E um parque automóvel com estas características é “uma forma de diferenciar a Madeira em relação aos outros destinos turísticos, por ter esta diversidade e esta quantidade de carros, e no estado em que se encontram”, refere Eduardo Jesus, para quem “cada proprietário de um automóvel clássico é, sem dúvida, alguém que preserva património.” Há uma relação sentimental com os carros.
E é ver, em tantas ocasiões, ao longo do ano, sobretudo aos fins-de-semana, estes autênticos viajantes no tempo, ao volante de carros com muitas histórias por contar.